A arte de se contar uma história: The Last Of Us: Part II

Sempre que consumimos alguma obra da qual gostamos, costumamos nos colocar no papel de escritor e guiar nossos personagens favoritos para o destino que queremos.

Quando a sequência de The Last of Us foi anunciada, lá em 2015, eu (como muitas pessoas) escrevi minha própria versão de para onde essa história ia. Assim como muita gente na internet, baseie minha versão nas características mais simplistas dos personagens e esqueci que pessoas (ainda mais pessoas num mundo pós-apocalíptico) são profundas. A sequência que escrevi não condizia com o mundo, muito menos com a natureza dos personagens.

Ainda bem que eu errei miseravelmente.

ATENÇÃO: ESTE TEXTO CONTÉM SPOILERS DE TODO O JOGO, INCLUSIVE COM VÍDEOS!

Muitas obras da ficção gostam de deixar um gostinho para que seu público possa imaginar o que vem a seguir.

Algumas são mais descaradas, terminando com o famoso “cliff hanger“, quando algo bombástico e inesperado ocorre nas últimas páginas ou no final do filme, à exemplo de “De Volta para o Futuro” quando Doc. Brown manda o Martin entrar no Delorean para em seguida irem para o futuro no carro voador.

Outras apresentam cenários vastos e complexos onde, mesmo que o arco narrativo principal se conclua, ainda sobra um mundo tão rico que dá margem à imaginação do fã mais assíduo. Basta lembrar do final do primeiro livro de Harry Potter, quando ele simplesmente volta para casa depois de um ano na escola de magia ou de Matrix, quando Neo voa para o horizonte após vencer seu algoz Smith. Se não houvesse continuações, a obra estaria fechada. O que sobra é uma infinidade de dúvidas e possibilidades que emergem do mundo criado.

O primeiro The Last of Us nos entregou uma história plenamente satisfatória, com um final que encerrava o arco narrativo dos dois personagens principais, sem cliff hanger, sem pontas soltas. À primeira vista, você pode achar que o mundo criado para o jogo é relativamente comum afinal, pós-apocalipse zumbi foi o que mais apareceu nos últimos anos. E, de fato, ele não importa muito.

O que Neil Druckmann e sua equipe fizeram foi construir uma relação humana que, assim como as obras que citei anteriormente, nos dão espaço para criar uma infinidade de histórias alternativas e resoluções fantásticas, tudo baseado em um final que termina com uma palavra e um olhar.

Graciosamente sendo levado pela narrativa

Logo nas primeiras cenas do jogo, vemos como a relação entre Ellie e Joel está quebrada. Alguma coisa aconteceu entre os dois e, naturalmente, você é levado a pensar “OK, ela sabe!” para logo em seguida descobrir que Ellie está, na verdade, chateada com o baile na noite anterior. Junte isso ao fato de, na cena inicial, você ver Joel confidenciando à Tommy sobre o ocorrido no hospital dos Fireflies.

“OK, ela não sabe!”.

Somos apresentados a uma sociedade em Jackson, funcionando normalmente, com produtos e serviços, festas. Tudo normal. OK, menos a parte de caçar infectados nas redondezas. Vida que segue.

Começamos a conhecer a relação entre Ellie e Dina, apresentada no início da excursão para procurar por Joel e Tommy, que ainda não voltaram de sua última ronda. Corta a cena.

Quando somos apresentados à Abby parece, a princípio, ser apenas mais uma dentre as muitas pessoas que sobrevivem no mundo. Ela está ali com um grupo de outros sobreviventes e é conduzida por seu amigo até um precipício de onde é possível avistar Jackson. Eles têm uma discussão (eles tem um passado amoroso e Mel, a atual do rapaz, está grávida dele), estão atrás de alguém mas ele está relutante. Ele volta ao acampamento. Ela segue em frente.

A partir desse ponto, a narrativa é uma montanha russa de geração e quebra de expectativa. O foco se alterna entre Ellie e Abby e, enquanto você vê a relação de Ellie e Dina se desenvolver, culminando na linda cena na estufa de maconha, você ainda não sabe o que Abby quer até que uma horda de zumbis a ataca. Tommy e Joel a salvam e seguem para o acampamento de Abby. Lá conhecem os demais amigos da menina. Joel se apresenta. Eles já o conhecem. Tiro na perna.

“Filha da p*ta!”

Quando Neil Druckmann nos coloca no controle da algoz de Joel, ele quer nos fazer sentir raiva afinal, quando começamos a jogar com ela, nada nos levava a crer que aquilo aconteceria. Esse sentimento é tão real que, quando logo em seguida assumimos o controle de Ellie, estamos com sangue nos olhos para ir atrás daqueles caras.

Quando finalmente encontramos Joel, Ellie assiste, impotente, o destino de seu “pai”. Ela quer vingança. Nós também! Nesse ponto, a principal questão que passa por nossas cabeças é “A Ellie nunca vai saber o que aconteceu. Joel nunca vai ter a chance de se redimir.”

É impressionante como Neil Druckmann conseguiu nos manipular o jogo inteiro. Depois de uma longa sequência com Ellie “sangue nos olhos”, nós voltamos a controlar Abby e, a partir daqui, vemos seus flashbacks com o pai que, vejam só, era o médico dos Fireflies. Sim, aquele que iria criar a cura e foi assassinado por Joel para salvar Ellie no primeiro jogo.

Aqui é quando todo o sentimento de raiva que você tinha de Abby se esvai. De repente, você entende as motivações da menina. Ela estava cega com a vingança e agora sabemos por quê.

“Joel, que filho da p*ta!”

A trama então se desenvolve na cruzada de vingança de Ellie, matando todos os que fizeram parte da morte de Joel até encontrar Abby. Nada pode impedi-la, nem a revelação de que Dina está grávida, doente e ela precisa voltar para casa para se tratar. Ao se recusar a voltar para casa, vemos que os papéis se inverteram, e agora Ellie é quem está cega por vingança.

Novamente, Neil Druckmann faz algo genial quando torna a saga de Ellie pesada e maçante (afinal, você tinha que ir pra casa com a Dina, ela está grávida e mal, cacete) enquanto torna a saga de Abby uma redenção em torno de seu antigo namorado, Owen (afinal, Abby já teve sua vingança e agora resta corrigir os erros do passado). Ele te faz ficar puto com Ellie quando ela mata Owen e Mel (com barrigão). Cacete, ela mata o cachorro!!!

“Ah Ellie, sério? Por que?”

As duas tramas se cruzam no teatro quando Abby dá uma surra em Ellie, mas a deixa viver sob a condição de nunca mais cruzar seu caminho.

Corta a cena, Ellie e Dina estão com o bebê em uma fazenda, felizes. Ellie dança com Dina e põe as ovelhas no celeiro. Tudo está bem. Final feliz. Fim do jogo.

Se você não for um escritor acima da média.

Tommy chega na casa e aponta o paradeiro de Abby para Ellie. Dina enxota ele da casa e dá uma lição de moral no véi pilha errada. OK, agora sim o jogo vai acabar.

Se você não for um escritor acima da média.

Vemos que Ellie ainda busca vingança. Ela não está satisfeita. Numa manhã, Dina a surpreende fazendo as malas. Ela vai largar Dina e o bebê para satisfazer sua vontade. Dina dá um ultimato à Ellie. Ellie dá as costas e sai pela porta.

“Ellie, sua filha da p*ta!”

Dois lados da moeda

Vi muitas pessoas dizendo que esse jogo é sobre o ciclo da vingança mas eu acredito que essa seja uma visão rasa. De fato, o jogo fala sobre isso mas, na minha visão, ele é sobre perspectivas. Somos apresentados a vários grupos de sobreviventes (Wolves e Scars), rivais entre si, e que nos são apresentados como inimigos.

Quando controlamos Abby, um membro dos Wolves, vemos que sua sociedade é igual à que vimos em Jackson, com escolas, comércio e pessoas querendo retomar suas vidas. Nos é apresentada a perspectiva do outro lado, que passamos meio jogo matando.

Com Abby, vemos que os Scars são maus como o pica-pau, para logo em seguida conhecer Lev e sua irmã, membros dos Scars que foram expulsos porque Lev era um homem trans cuja sociedade (praticamente um culto religioso) não o aceitava e queria matá-lo (ok, eles são maus sim).

O ponto é que, mais uma vez, nos é apresentada uma outra perspectiva, de pessoas que talvez só estejam ali porque era o grupo que lhes acolheu. Assim como Ellie tinha seus motivos para sair pelo mundo em busca de vingança, todos ali também tinham seus motivos particulares. Isso não os torna necessariamente más pessoas.

Isso vale também para Ellie. Ao longo do jogo, vemos flashbacks onde Ellie voltou ao hospital e pôs Joel contra a parede sobre a verdade. Isso mostra que ela já sabia, o tempo todo, o que Joel havia feito e eles já tinham se confrontado. A relação dos dois estava abalada por causa disso. Portanto, a vingança pura e simples pela morte de Joel não era a motivação principal. Ela nos é revelada na cena final do jogo.

Quando Ellie já encontrou Abby, a deixou ir e voltou para casa, descobrimos que, no dia da festa, Ellie e Joel tentaram fazer as pazes. Naquele dia, Ellie disse que tentaria perdoar Joel. Quando Abby o mata, ela tirou de Ellie a oportunidade de se redimir com seu “pai”. A saga de Ellie contra Abby não foi motivada por vingança mas pela perspectiva de um futuro com Joel, que foi tirada abruptamente dela.

Isso é mais profundo que qualquer sentimento de vingança. Não é raso. É humano, é verdadeiro. É… não tenho mais palavras.

E o veredito?

The Last of Us é uma experiência única, que só videogames podem proporcionar. A história é densa e me deixou arrasado no final mas isso só foi possível porque podemos tomar o controle dos personagens, agir como eles.

Tal qual o primeiro jogo, a sequência elevou a barra de como se contar uma história. Me arrisco a dizer que este jogo irá moldar não só a indústria de games como também de filmes e livros.

Toda a gama de sentimentos que me foi imputada nessa saga é digna de reverência e deveria servir de exemplo para qualquer escritor que queira ser acima da média.

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