Nem todo jogo é para todo mundo
Nem todas as obras artísticas são palatáveis ou acessíveis para qualquer público. Seja pela bagagem anterior necessária ou pelo olhar abstrato requerido ou pelo tempo que se precisa investir para consumi-las, filmes, livros, obras de arte e música podem requerer de quem as consome um nível de engajamento que, talvez, essa pessoa não tenha ou esteja disposta a investir.
Eu particularmente adoro os livros originais de Senhor dos Anéis e li O Silmarillion contente de que havia mais daquele universo para consumir, mas questionei o parentesco com meu irmão que achou chatíssima a leitura de A Sociedade do Anel. O inverso também aconteceu, quando comecei a assistir por insistência a primeira temporada de Game of Thrones e lutei para chegar ao último episódio (não me julguem).
O que é comum a ambos os cenários é que, independente de gostar ou não, o conteúdo todo está lá, cabendo apenas ao leitor/espectador se motivar o suficiente para chegar ao final. Em jogos o princípio deveria ser o mesmo, bastando apenas um certo nível de dedicação para que se chegue ao final, certo? Pois é, o buraco é um pouco mais embaixo.
Diferente de qualquer outra mídia, eletrônica ou não, jogos possuem um componente interativo que “obriga” o jogador a traçar sua própria jornada. Esse elemento ativo vai estar presente em qualquer jogo, mesmo que minimamente. A partir dai, desenvolvedores implementam as mais diversas soluções de game design para manter o jogador motivado a continuar sua experiência. Da liberação gradativa de áreas às fases escondidas ou a mais simples das tarefas de exploração, limitação faz parte do cerne de praticamente todos os jogos eletrônicos. Mesmo os walking simulators como Dear Esther estimulam o jogador a explorar um mundo enorme, o que por si só já se torna um desafio e influencia a experiência única que ele terá naquela sessão de jogo.
Obviamente que diferentes gêneros se focam em diferentes desafios: jogos de plataforma, na precisão; RPGs japoneses, na evolução dos personagens; adventures na exploração e quebra-cabeças. Cada um deles contam com níveis de dificuldade variados, que espelham a visão do desenvolvedor para o jogo. É nesse ponto que a discussão acerca do acesso ao conteúdo se acirra.
Tomemos como base Dark Souls. Uma das maiores surpresas dessa geração, figura na lista dos jogos mais difíceis de todos os tempos. Ele se apoia no conceito de que o jogador melhora à medida que se dedica ao jogo. Os inimigos são difíceis, o cenário é traiçoeiro e a morte de certa forma é (bem) punida, mas as áreas do jogo são acessíveis desde o início (com algumas poucas exceções). O que torna Dark Souls difícil é o desafio mecânico, uma vez que, ao contrário de grande parte dos jogos nesse estilo, não é imprescindível que seu personagem se torne mais forte mas sim que você como jogador se torne melhor, prestando mais atenção às áreas onde passou ou nos padrões de luta dos inimigos a sua frente. Se o jogador não conseguir transpor essa barreira, provavelmente vai se frustrar e não chegará muito longe.
Mesmo em jogos onde não existe combate algum é possível que o jogador fique travado e nunca consiga aproveitá-lo em toda sua plenitude. The Witness, o último jogo lançado de Jonathan Blow, tem como desafio uma série de puzzles que à primeira vista parecem fáceis (uma especie de labirinto com pontinhos) mas que ficam insanamente complexos no decorrer do jogo.
Novamente, todo o mundo está disponível para ser acessado desde o início (também salvo algumas exceções) sendo a única barreira para progredir e entender o subtexto do jogo, o entendimento da lógica por trás dos puzzles. Jonathan Blow faz um genial trabalho em adicionar gradualmente mais complexidade em um conceito simples, demandando do jogador capacidade de raciocínio lógico e (muita) paciência. No total, são mais de 500 painéis e outras coisas para resolver no mundo e, por mais que não seja obrigatório completar todos para “finalizar” o jogo, não é incomum encontrar pessoas na internet que se dão por satisfeitas antes de chegar ao final. Novamente, não há restrição efetiva de conteúdo, sendo a única barreira a dedicação do jogador.
Em ambos os casos, não existe um controlador de dificuldade. O jogador precisa seguir no nível definido pelo desenvolvedor e se contentar com isso. Em certa medida, também não há um limitador do conteúdo, sendo necessário apenas dedicação para que se possa ver tudo que o jogo tem a oferecer.
Porém, essa barreira de acesso ao conteúdo completo do jogo, imposta pela dificuldade e dedicação, parece ter sido percebida somente agora com o lançamento de Cuphead que, além de ser incrivelmente bonito, já está sendo considerado um dos jogos mais cruelmente injustos dessa geração.
Ao contrário dos exemplos anteriores, o jogo do Studio MDHR permite que o jogador selecione, a cada chefe, a dificuldade na qual deseja enfrentá-lo, desde o nível fácil (easy), passando pelo médio (regular), até o mais difícil (expert), e é aqui que começou o problema. O modo normal é a experiência padrão do jogo, oferecendo ao jogador a experiência completa de todos os mundos existentes. Já neste ponto, temos uma restrição imposta, onde cada novo mundo só pode ser acessado se todos os chefes do mundo atual forem derrotados.
Já no modo easy, a dificuldade não é apenas reduzida mas também há corte de conteúdo. Explico: os chefes de Cuphead possuem diversos “estágios” com diferentes animações e ataques, o que é, aliás, a grande beleza do jogo. A questão é que isso só se aplica aos modos regular e expert. No modo easy, além das batalhas com os chefes serem simplificadas, muitas das animações são cortadas e até o acesso a uma área inteira é restringida do jogador.
Essa limitação foi a que justamente iniciou a discussão acerca da restrição de conteúdo nos jogos. Um dos argumentos contra a decisão tomada em Cuphead é a de que jogos que possuem loot ou itens secretos tratam esses elementos como secundários enquanto que no jogo do Studio MDHR parte da atração principal é cortada para quem não o joga na dificuldade padrão. Para uma parcela dos jogadores, a existência de um modo realmente mais fácil que ofereça o conteúdo completo aumenta a diversão e torna o jogo mais acessível para uma gama maior de pessoas.
Observando todo o histórico dessa geração, não entendo exatamente o porquê de tal discussão ter despontado com esse jogo. Talvez seja pela curva de dificuldade ter se elevado novamente, pelos jogos possuírem um escopo cada vez maior, ou simplesmente pela necessidade de reclamar. Fato é que opções para simplificação podem ser tendência daqui pra frente, vide a decisão da Ubisoft em adicionar o modo “Discover Tour” no novo Assassin’s Creed Origins, que retira todo o desafio do jogo e o transforma basicamente em um jogo de exploração.
Particularmente, discordo que todo jogo deva ser palatável a todos ou que os desenvolvedores tenham que bolar artifícios para fazer com que os jogadores vejam todo o conteúdo de sua criação. Acredito que, como uma obra artística, a visão do criador tem que ser mantida independente dela ser acessível (em termos de entendimento, complexidade) ou não. Não fosse assim, jogos como Super Meat Boy, Binding of Isaac, Limbo e tantos outros não poderiam existir. Nem filmes de Darren Aronofsky. Ou as músicas do Pink Floyd.